Quinta, 19 Março 2015 16:43

Quaresma 2015: Como Maria está ao pé da Cruz de Jesus

 

  

            A comunidade joanina nos apresenta uma mariologia bem elaborada, pois, já estamos no segundo século e os evangelistas anteriores já haviam dado sua contribuição nesse sentido.  Numa linguagem que inclui figuras que apontam para as pessoas a quem João pretende escrever seu Evangelho; fala do “discípulo amado”, que sua mãe “estava de pé” debaixo da Cruz de seu filho e que Jesus viu sua mãe perto do “discípulo amado”. Estamos falando da segunda citação que João faz referindo-se a sua mãe e ao discípulo amado. Este discípulo não se sabe se é João evangelista mesmo ou outro amigo da confiança de Jesus. O Evangelho não traz escrito o nome dele, só diz que “era o discípulo amado”.

            Cada uma destas expressões figurativas têm um sentido profundo de teologia feita na perspectiva mariológica.  Deve-se reconhecer ainda que esta citação do capítulo 19, 25-27 é curto, mas tem muito a se dizer dele, pois é o momento de Jesus e sua mãe na hora suprema da Cruz. Para o momento particular que os povos da extensa América Latina e Caribe passam, interessa-nos evidenciar uma atitude concreta de Maria ao pé da Cruz. É a atitude que nos fala mais alto que todas as outras: a solidariedade. Maria é solidária com Jesus, com o povo e com a mulher de hoje.

 

Maria é solidária com Jesus até o fim     

         A idéia de que o martírio dos profetas é o coroamento de todas as suas profecias em Maria esta idéia se impõe através  da sua participação ativa e solidária aos sofrimentos e ao abandono de Jesus na Cruz. A solidariedade humana que permanece perto da Cruz de Jesus na pessoa de Maria, suas amigas e o “discípulo amado”, fala de uma experiência martirial que leva ao ponto mais alto a missão profética de toda a humanidade, homens e mulheres, que ainda, hoje, vivem a solidariedade com seu povo como Maria e as outras pessoas que lá estavam apontando para o nascimento da Igreja que Jesus Cristo queria deixar como missão para todos nós.

           

            A força da profecia proclamada no Magnificat, chega ao seu ponto mais alto com a participação ativa de Maria no abandono e na humilhação do Filho que se submete ao poder deste mundo para salvar toda raça humana da força destruidora do poder do mal em vista da verdadeira vida que é a vida escatológica.           

            Quando todos abandonam Jesus, Maria fica de pé perto dele. Ela não se importa com o aparente fracasso da proposta de seu Filho, nem com a fama  que ele perde por ter sido julgado como um preso comum, condenado á morte como um assassino da Lei e um enganador do povo que apostou nele (cf. Mc 1,28; Lc 4,37). Para nós, a figura de Maria silenciosa e humilhada ao pé da Cruz de Jesus, é sinal de esperança na luta desesperada que estamos enfrentando dia-a-dia, ano por ano com suas surpresas, década por década com seus danosos retrocessos.

            Maria de Nazaré é a mãe do Deus que está ao nosso lado, a companheira fiel que caminha conosco sobre o pedregulho desta estrada e a irmã terna e amiga das horas de desconforto. A mulher que está  sempre  ao nosso lado, embora muitas vezes tenhamos a sensação de que o Deus Libertador se esconde de nós ou até mesmo se esquiva. A nossa opção de estarmos do lado das massas famintas e humilhadas, porém, continua firme e sempre  mais determinada e incontestada.

 

Maria é solidária com seu povo na pessoa das mulheres e de João

            A solidariedade que Maria mostra com o povo de seu tempo derruba a tese das retribuições terrestres e reduz ao silêncio todos os argumentos do saber humano. Esta sua solidariedade se confunde com a do povo que a ama e a venera como mãe, companheira e irmã. Desperta em cada mulher e em cada homem as verdades antigas adormecidas para desenvolver a vida de Jesus em cada um, em cada uma e tirar-nos do adormecimento provocado pela falta de consciência social e histórica. Numa palavra, Maria desperta o coração do Filho adormecido no coração de cada povo (cf. Documento de Puebla 295).

            É deste modo que Maria de Nazaré se revela como exemplo para as mulheres e os homens que não aceitam, passivamente, as circunstâncias adversas da vida pessoal e social, nem aceitam serem vítimas da alienação (cf. DP 297), mas se dispõem a proclamar com ela o Deus que  "vinga os humildes" e derruba os "gananciosos de seus tronos"(João Paulo II na Homilia de Zapopán). Diante do fracasso da Cruz há  muitos argumentos e de  variadas tendências, os  quais pretendem explicá-lo:  como esperar por nova vida, por novos tempos e até mesmo por novos profetas e profetisas que falem ao povo da utopia do Reino trazida por Jesus, aqu`Ele que se dizia Filho de Deus, aqu’Ele que já  existia antes de Abraão, e agora morre como um desertor da Lei, um enganador dos pobres e um impostor dos grupos que militavam para a libertação do povo?

            Maria não é nomeada no  episódio de Cana. João a designa simplesmente, como “mãe de Jesus” ou como “mulher”, termo comumente empregado nos Evangelhos. Não é por mera casualidade que a encontramos, em São João, no princípio, em Cana, e no fim da vida de Jesus, quando recebe uma nova maternidade: a do Corpo de Cristo ou do Povo de Deus na pessoa do discípulo amado (cf. Jo 19, 25-27).

            Neste ponto da nossa reflexão, na nossa América do Sul do Mundo, sentimos e constatamos que Deus interveio na caminhada de nossa vida em direção ao Pai. Sentimos e constatamos que esta sua intervenção foi forte, foi doída e até humilhante. Sentimos e constatamos que fomos tratados como o nosso companheiro Jó, reduzido ao silêncio e ao desprezo dos amigos que queriam convencê-lo de que a culpa era dele, pelo fato de estar sofrendo tantas humilhações, incompreensões e perdas de toda a espécie. Mas Jó permanece firme, embora com seus deslizes que ele mesmo confessa:

Eis que falei levianamente: que poderei responder-te?

Porei minha mão sobre a boca;

Falei uma vez, não replicarei;

Duas vezes, nada mais acrescentarei

(cf. Jó 40,4-5).

 

Jó resiste e consegue ver a Deus com seus próprios olhos depois de haver passado pela longa provação, e, reconhecido, faz sua confissão de fé em Shaddai, aquele que o provou e dá sua resposta:

Reconheço que tudo podes

E que nenhum dos teus desígnios fica frustrado/.../.

Conhecia-te só de ouvido,

Mas agora viram-te meus olhos: /.../ (Jó 42, 2.5).

 

        Jó tem agora uma nova percepção dos desígnios de Deus. Penetra no mistério e inclina-se, porque passa a ter de Deus não uma idéia, mas uma experiência que inclui a injustiça, o sofrimento, a morte como passagens necessárias para a vida plena. Entendemos ter chegado o tempo maduro da grande revelação de Deus para os povos do Sul do Mundo espoliado. Para as comunidades cristãs mais conscientes é um escândalo que Deus não nos tenha levado a sério como esperávamos. O momento continua sendo importante para a libertação dos povos deste Continente, povos que sempre mais deitam raízes da esperança e do desejo de celebrar com seu jeito próprio a vitória da libertação. Agora sentimos e constatamos o mesmo que Maria, suas amigas e o povo representado na pessoa de João, viveram até o mais profundo que puderam, o aparente fracasso do mistério revelado pelo abandono e pela humilhação da Cruz de Jesus no Monte Calvário.

            Mais do que nunca o povo da América Latina com suas Ilhas do Norte, está  dando de sua pobreza às Igrejas Particulares de outras culturas e de outras tradições religiosas. Chegou a hora para o nosso povo de intensificar os serviços recíprocos com outras Igrejas, serviços que apontem para um futuro promissor, oferecendo "algo de original" e projetando-se além das próprias fronteiras com a missão "ad gentes" (cf. DP 368). Mas chegou também a hora suprema de testemunhar a hora de vivermos a Ressurreição que brota da Cruz de Jesus e se derrama sobre a nossa missão junto aos mais pobres e despossuídos.

            Dez anos depois do Vaticano II, Paulo VI publicou uma Exortação Apostólica sobre Maria com o título Marialis cultus que quer dizer, “O culto dado a Maria”, na qual coloca Nossa Senhora ao pé da Cruz como a mulher solidária de toda a humanidade, quando escreve:

        A humanidade, hoje, descobrirá em Maria, a Mulher que favoreceu a fé da comunidade apostólica em Cristo, sua maternidade se dilatou, vindo a assumir no Calvário dimensões universais. É deste modo que Maria está ao pé da Cruz de Jesus com sua solidariedade universal que aponta para a ressurreição que passa pela Cruz (cf. MC 37).

           

 Lina Boff

Professora emérita da PUC-Rio

Texto publicado na Revista Paz e Bem.

 

 

 

 

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